“Cenário atual é parecido com o do racionamento, mas muito mais complexo”, diz CEO da PSR

Guilherme Mendes, da Agência iNFRA

O setor elétrico terá pela frente tempos difíceis, comparáveis aos do racionamento de energia, em 2001. Na época, a redução de 20% no consumo provocou queda no faturamento das empresas, trouxe inadimplência, falências, atrasos em investimentos, socorro com recursos do Tesouro e, por fim, a reformulação do modelo de energia.

Para o CEO da consultoria PSR, Luiz Barroso, a discussão dos grandes impactos da pandemia de Covid-19 ainda está por vir, e o governo precisará de capacidade de liderança para, junto com os agentes, conseguir superar esta confusão.

“Pode-se até dizer que o cenário é parecido com o do racionamento de 2001, mas muito mais complexo devido ao tamanho atual do mercado livre – inexistente em 2001 –, à pluralidade dos agentes, quantidade de relações comerciais e mais disputa por interesses específicos, ilustrado pelo número elevado de associações, que brigarão pelos interesses de seus associados”, disse Barroso em entrevista à Agência iNFRA.

Ex-presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Barroso traçou possíveis cenários para o setor com a pandemia. Leia a seguir a entrevista:

O quão afetado pode ser o setor elétrico brasileiro com a atual pandemia de Covid-19?
O setor será muito afetado. Os maiores riscos são os impactos da crise econômica, como a redução de demanda e potencial inadimplência, além dos efeitos do mercado de combustíveis e câmbio. O confinamento e restrições de deslocamento devem afetar também os cronogramas de obras, manutenções e a logística de parte da população para o pagamento das contas de luz.

Que papel o governo federal tem na administração desta crise? Até o momento, vem cumprindo bem este papel?
No âmbito do setor elétrico os problemas ainda estão começando e a postura do governo tem sido diligente e atenta. A discussão dos grandes impactos ainda está por vir e o governo precisará de capacidade de liderança para, junto com os agentes, conseguir superar esta confusão.

Pode-se até dizer que o cenário é parecido com o do racionamento de 2001, mas muito mais complexo, devido ao tamanho atual do mercado livre – inexistente em 2001 –, à pluralidade dos agentes, quantidade de relações comerciais  e mais disputa por interesses específicos, ilustrado pelo número elevado de associações, que brigarão pelos interesses de seus associados.

Houve, nos países europeus mais afetados pela doença, uma recente queda na demanda de energia elétrica, entre 15% (França) e 25% (Itália). É possível trabalhar com tal cenário no Brasil nas próximas semanas?
O consumo sem dúvidas será muito afetado. No Brasil já caiu bastante, mas não sabemos se chegamos ao fundo do poço ou se o poço é ainda mais fundo.

Este ambiente vem sendo observado em todo o mundo, mas não é correto utilizar valores observados em outros países para estimar o que vai ocorrer aqui.

A razão é que a estrutura das economias europeia e brasileira é muito diferente, além do que estamos inclusive em estações do ano distintas. Por exemplo, é inverno na Europa, com maior uso de ar condicionado (aquecimento). No entanto, a maior dificuldade deste exercício, agora, é a falta de conhecimento da cara da “nova economia” quando terminar a crise.

Ainda é muito difícil estimar de forma minimamente razoável qualquer magnitude deste impacto devido ao momento de extrema incerteza que estamos vivendo. O que sabemos é que a redução de demanda será armazenada nos reservatórios, melhorando a situação de suprimento.

Esses estragos que ocorreram lá fora seriam sentidos no Brasil de que forma?
Os impactos são muitos. Internacionalmente provocarão uma possível reprecificação de ativos, devido aos menores preços de mercado, pela redução do consumo. Há muita preocupação com inadimplência generalizada e falta de caixa às empresas, que pode afetar sua solvência financeira.

A indústria de etanol pode também passar sufoco com o menor preço do petróleo.  E podemos ter uma nova onda de aquisições. No Brasil esses impactos também estão presentes.

Haverá queda nos preços do mercado de curto prazo de energia (PLD – Preço de Liquidação de Diferenças)? Qual o impacto no GSF (risco hidrológico)?
A redução de mercado impacta (reduz) o PLD que afeta comercialização e tarifas. Impacta também o GSF (risco hidrológico), aumentando o problema (piora o GSF), que afeta igualmente a comercialização, e as tarifas. Mas, nesse caso, o efeito econômico do GSF vai depender de sua composição com PLD, ou seja, um GSF pior a um PLD menor é melhor para o gerador que um GSF melhor e um PLD mais alto.

Qual o impacto nos leilões de geração e transmissão?
A redução de mercado impacta e aumenta incerteza em volumes dos leilões e investimentos em geração e transmissão. E, principalmente, impacta situação financeira das distribuidoras, criando potencial sobrecontratação. Ainda no caso das distribuidoras, a redução de mercado afeta as receitas de tudo que é pago por MWh faturado, como a CDE.

O câmbio maior e preço de energéticos (petróleo e gás) menor impacta o CVU (custo variável unitário) das térmicas, que afeta despacho e PLD. A extrema incerteza em ambos cria maior dificuldade para investidores prepararem suas ofertas em leilões. Um preço do petróleo menor afeta a rentabilidade do óleo do pré-sal, e um preço do gás menor aproxima a competitividade econômica das térmicas a gás das renováveis.

A quarentena pode comprometer o cronograma das obras do setor?
Situação econômica cria a ameaça do exercício de “força maior” em contratos, aumentando o risco de inadimplência na cadeia, e também o atraso de obras, com penalidades associadas. A própria necessidade de lockdown já faz com que algumas usinas em algumas localidades não possam operar por 15 dias, o que afetará sua disponibilidade, e acarretará em penalidade contratual.

A ANEEL retirou de pauta os editais de leilões que poderiam ser aprovados por sua diretoria porque “o cenário mudou”. Foi uma decisão acertada?
A decisão da ANEEL foi correta, pois é muito difícil um investidor precificar compra de equipamento com estas incertezas e igualmente complicado para uma distribuidora declarar demanda futura para o leilão e para o próprio planejamento identificar se os investimentos em transmissão planejados ainda são necessários.

Realizar o leilão agora afeta a própria credibilidade do processo, pois aumenta o risco de ofertas realizadas sob extrema incerteza se mostrarem desequilibradas economicamente e trazerem problemas, e aumenta o risco sobre investimentos ao consumidor, com impactos tarifários.

Postergar o leilão foi correto e agora é aguardar o desenrolar desta crise sem precedentes.

A proposta de não cortar a luz durante a crise pode agravar a inadimplência no setor de distribuição?
O potencial de inadimplência tem que ser pensado de forma até independente da proposta do não pagamento das contas de luz, pois ela será um problema mais geral devido ao impacto econômico do lockdown, seja no consumidor final, microempresário, varejo, e mesmo em meios físicos para pagar a conta de luz. Só para dar um exemplo, há muitos casos de consumidores adimplentes, sem contas bancárias, atualmente mas que pagam suas contas de luz em lotéricas.

Com as lotéricas fechadas pelo lockdown, há um novo tipo de inadimplência, independente de propostas de governos estaduais. Esse é só um exemplo de problema, cuja solução vai exigir muita criatividade. Neste caso, por exemplo, uma articulação com supermercados para receberem pagamentos da conta de luz poderia ser uma proposta, partindo do princípio que estes consumidores irão ao supermercado. Há inúmeros outros casos que aparecerão, incluindo também casos no mercado livre.

Que conjunturas podem ser esperadas, no setor elétrico, caso a crise com a Covid-19 dure mais tempo que os 3 a 6 meses cogitados pela maioria das autoridades sanitárias? O setor consegue suportar uma demanda deprimida por tanto tempo?
A situação é muito grave e acho que as consequências podem ser muito severas. Até agora nenhum país parou para pensar em uma solução estrutural. Na Europa, por exemplo, o Tesouro vem entrando em campo, e até mesmo a estatização de ativos é considerada.

Esta é uma realidade de países com caixa para injetar na economia, situação bem diferente do Brasil. Por aqui temos nossas fortes restrições de superávit, não dá para sair injetando dinheiro de qualquer forma como lá fora e temos ainda uma tarifa já muito alta, com pouco espaço para aumentos adicionais.

Mas confio que a inteligência distribuída do setor nos fará chegar a uma solução. E é importante lembrar que o desenho das soluções para os problemas de curto prazo pode afetar o desenvolvimento de longo prazo de nossa indústria, tal como ocorreu no racionamento. Em resumo, temos muitos efeitos de curto prazo, e seu tratamento impactará o longo prazo.

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